A melhor refeição argentina
– Conto – Cleber Sousa Teixeira - Outubro de 2014
– Moça, moça. Você
não vai me contar histórias hoje?
– Já estou indo Seu
Antenor – respondeu a jovem enfermeira.
– Adoro ouvi-las, me
fazem viajar. Ao invés de dormir, desperto...
– Pronto, cá estou.
Aqui a jarra e os copos. O tempo está muito seco e precisamos nos hidratar.
– Então levanta um
pouco a cabeceira da cama, por favor.
– Assim, ou mais um
pouco?
– Opa! Isso. Assim está
bem.
– Onde paramos,
deixa-me ver – folheando uma caderneta de capa há tempos puída. – Ah, sim,
estamos na parte das viagens. Certa vez o viajante resolveu fazer uma
travessia, se inspirara no navegador Amyr Klink e falou: “Para atravessar o Oceano
ele fez um barco a remo simples e marinheiro; eu também farei uma travessia, só
que por terra, cruzarei a América, do mesmo Atlântico ao Pacífico, só que de
bicicleta.”.
– Nossa, um veículo
tão frágil, uma bicicleta!
– Pois é, entre o
desejo e a realização foram prazerosos oito anos. Com a ajuda de seu primo
Tatu, aprendeu a pedalar uma mountain
bike, primeiro em sua cidade, depois as vizinhas, seu Estado, o Estado
vizinho; a evolução era gradual, cruzou países na Europa e na América, mas ele
considerava isso apenas um preparo, pois nesses locais ele sempre contava com
uma infra-estrutura turística com restaurantes e pousadas; na sua travessia
continental não poderia contar com isso – ele se ajeitou como podia na cama,
ela logo o ajudou. – O viajante tinha lá suas responsabilidades: dois filhos e
uma carreira, a fonte financeira de seus desejos de viagens. Logo, pesquisava e
planejava o quanto podia para não gastar muito e principalmente voltar vivo de
suas andanças. Apesar de viajar só, ele sempre dizia que “apenas aparentava
estar só, mas estava com Deus e as pessoas boas que encontrava no Caminho”. O projeto dessa travessia teve várias pegadas e os quatro
meses anteriores a viagem foram de muita dedicação, que resultou em um guia
personalizado resumido em setenta páginas, com mapas, escalas altimétricas, muitas
atrações e riscos a correr. Ele buscou um trecho possível de percorrer em no
máximo vinte dias de pedal, além de que também fosse o menos turístico
possível, logo escolheu o Norte da Patagônia como destino.
– Ai, ai, ai. A Patagônia!
– Certa vez ouviu falar dos fortíssimos ventos patagônicos e
teve a infeliz notícia de que pedalaria contra eles, abateu-se e arquivou o
projeto por dois anos.
– Não me diga que ele desistiu?
– Calma, calma. Ele apenas estava cego e não via o óbvio.
Numa noite, correndo em volta a um campo de futebol, ouvindo Ramones, Metalica,
Guns e afins, a brisa leve no rosto e a frase I believe in miracles no fone de ouvido o iluminou. Mudaria tudo no
projeto “se não posso contra o vento, vou a favor dele.”, pensou.
– Como assim?
– Ele inverteria a travessia, a “Expedição Patagônia Norte -
do Pacífico ao Atlântico” tomaria seu rumo definitivo.
– E aí, conta logo, como foi a viagem?
– Então beba meio copo d'água. Vamos lá, eu lhe ajudo, também
vou tomar. Isso Seu Antenor, muito bem!
– Agora conta – cobrou-a tendo os lábios ainda molhados.
– Está bem. O mês escolhido foi fevereiro. Equipamentos em
ordem, passagens compradas, férias acordada, pronto, num sábado ao entardecer
ele via magicamente a então rosada Cordilheira dos Andes, era sua primeira vez,
estava emocionado embaçando a janela do avião. Dormiu no chão do aeroporto.
No outro dia, uma rápida conexão à Puerto Montt, cidade de colonização alemã com
uma mescla de charme e perigo portuário. De lá,
embarcou em um ferry boat noturno à
Chaitén – o rosto ansioso do ancião proclamava
pela continuidade, ela atenta, embalou na narrativa já decorada. – Chuva fria,
montanhas geladas, pedras e asfalto escorregadios. Saiu da barca empurrando a
carregadíssima bicicleta, quarenta quilos de bagagem, mais dez litros de água,
fora os quinze quilos que o viajante levava de lastro “gordural”, ele era
vidrado numa cervejinha. Com dificuldades, encostou seu pesado camelinho no
barranco. Pegou um pequeno frasco plástico, aqueles de guardar remédios
líquidos, desceu para a primeira coleta: um tantinho de águas do Pacífico. O
vento inclemente quase fez de pipa mandada sua capa de chuva. Despediu-se do
vilarejo e daquele Oceano rumo ao pé dos Andes. A estrada lisinha, as gotas que
lhe cortavam o rosto, caminhonetes, muitas delas a mais de cem por hora. Mesmo
com um dia ruim, fez-se um belo dia feio. Um pouco antes da primeira cidadela
do caminho, olhou à direita e assustou-se com um avião caído no meio do
mato e com mato no meio. Achou que apenas passaria
por essa cidade, mas a bicicleta quebrou o eixo e lhe faltou uma chave
dezessete, precisaria de duas. Problema, que nada, um casal dono do parque
privado apareceu, logo seus funcionários o ajudaram, dois chilenos e uma alemã
que viajava de moto desde o Peru e ali parou para trabalhar. Seguiu viagem pela
Carretera Austral, agora sem asfalto,
sofreu, mas sofreu muito. A chuva criou muitos olhos na estrada de rípio, mas viu vulcões, lagos, glaciares
e picos nevados. As subidas eram intermináveis e a parte chilena da expedição durou
o dobro do previsto, quatro dias, “...tudo bem, a paisagem compensava.”, ele
escrevera em seu diário. A parada mais importante da etapa argentina foi
Esquel, cidadezinha toda quadriculada, tendo ao fundo montanhas que no inverno
serviam de pista de esqui. O albergue internacional era ótimo, mas duvidavam
que ele fosse capaz de fazer noventa e cinco quilômetros até Gualjaina. Logo de
manhã, saiu da cidade e lamentou não ter visto de perto a maria-fumaça, que
fora parte do antigo Expresso Patagônico e apitava nos trilhos à beira da
estrada. Fez um pequeno trecho da mítica Ruta
40 e mesmo se perdendo um pouco, conseguiu chegar ao duvidado destino do
dia, os trechos de asfalto definitivamente acabaram. Bem, mas antes, mais meio
copo de água.
– Ah... mas acabei de beber.
– Não senhor. Já
estou com a boca seca. Vamos. Eu lhe ajudo de novo – com manha ou sofreguidão,
bebeu sem tirar os olhos dos olhos dela. – A próxima etapa foi dura, mas ele
estava motivado, por sorte sua bicicleta só quebrou quando ele chegou a uma
pousada de Piedra Parada, reduto de escaladores em rocha, lá há um cânion – seus
olhinhos ávidos suplicavam por mais. – A roda dianteira partira ao meio, lá não
haveria qualquer solução, o jeito seria voltar para Esquel. Como? Só de carona,
o ônibus semanal partira naquela manhã. Relaxou, tomou uma Quilmes e montou
acampamento. No outro dia, deixou parte da bagagem no local e foi hacer dedo na beira
da estrada, o primeiro carro que passou, parou e o salvou; o levou até a
cidade, lá resolveu tudo e voltou a dormir naquele albergue, onde comprovou que
havia chegado ao destino, ainda assim, fora duvidado. Muito bem, parecia tudo
resolvido, mas e agora como voltar? – os olhos de Seu Antenor pareciam
que iram saltar, já sua boca diminuíra à metade. – Deu um pulinho para conferir
de perto a relíquia ferroviária. Pegou um ônibus até Gualjaina, com três
caronas e um par de horas de esperas finalmente voltou onde tinha parado a
pedalada. Em Paso el Sapo, cruzou o rio Chubut, na exata metade do caminho,
desse rio, coletou mais um frasco d´água. Gastre lhe fora muito hospitaleira,
sentiria falta disso, pois a Ruta
Provincial 4 seria duríssima. As pedras soltas do rípio eram asfalto perto das areias finas do deserto. A bicicleta deitava na estrada e ele quase sempre caía e se
ralava. Um dia antes chegou a delirar com um refrigerante gelado em meio ao
deserto, e não é que o Universo o atendeu, não só com o “refri”, mas também com
um prato de macarrão em pleno deserto. A melhor refeição argentina! Tirando um
dia que cantou “Maluco Beleza” do Raulzito e bebeu água de maneira que lhe
escorria pela barba e pescoço, o deserto fora muito cruel com seu psicológico,
sofrera muito com a dureza do caminho e a solidão. Sentiu falta de dividir tudo
o que vivia com os seus. Ao todo, pedalou 1.015 quilômetros, alcançou seu
objetivo e colheu a água do Atlântico também. Nessa viagem aprendeu coisas que
demorou anos para entender.
– Cante um trecho
dessa música. Posso beber água igual a ele?
– Claro. “... por
esse caminho que eu mesmo escolhi...”
– “... é tão fácil
seguir, por não ter aonde ir...” – com a água molhando sua camisa. – Agora me
lembro, nunca havia me sentido tão livre quanto aquele dia.
– Eu sei vovô! Eu
sei! Amanhã lhe falarei do Aconcágua.