quinta-feira, 10 de março de 2011

Missões Jesuítas em Terra Brasilis

Mais uma balsa me transportou de um país para o outro, mas dessa vez era para o meu país. Já cruzei outras fronteiras antes, mas essa tinha um sabor especial, no alto da alfândega tinha um enorme: "BEM VINDO AO BRASIL".
Cidades irmãs (ou hermanas) San Javier, na Argentina e Porto Xavier, no Brasil, são facilmente unidas pela balsa que cruza o Rio Uruguai. Nessa balsa cruzam até caminhões.
Engraçado reparar, como apenas uma simples fronteira provoca tantas mudanças rapidamente. O celular funcionando normalmente, botecos abertos, salgadinhos envelhecidos nas vitrines, acostamentos largos, maior circulação de veículos, etc., sem falar na língua. Mas foi justamente o problema da língua que mais me impressionou.
Em Porto Xavier fui pedir informações para um capiau e demorei para entender que língua ele falava, mas pasmei quando percebi que era Português mesmo. Ele tinha uma fala entrecortada cheia de caras e bocas que mais me lembrou o estereótipo do Mineiro, não Gaúcho. Consegui entender e sua informação foi muito útil.
Comi um "X", lanche que parece um beirute, servido no prato. Abasteci de água e fui para estrada.
Segui na BR-392, foram 17 km de uma longa subida e uma descida de 3 km até ver a sinalização: Pirapó 11 km!


Mar de soja à caminho de Pirapó e São Nicolau.


Era uma estradinha de terra em meio à plantação de soja. Com subidas e descidas leves. O problema foi que faltava água para reabastecer. Os três litros e meio que tinha não foi o suficiente frente o calor que fazia. Estava a apenas 4 km da cidade, pouco antes de cruzar o Rio Ijuí de balsa, quando a água acabou. Assim que acabou a sede começou a atacar. A cidade não estava tão longe, mas o sol inclemente fez a viagem parecer mais longa. Cheguei ao portal da cidade e pedalei mais um quilômetro para achar um restaurante aberto naquele domingo de sol. Achei. Tomei um litro e meio de água e abasteci meu estoque.
Faltavam 20 km até o destino final daquele dia. Nesse trecho pude curtir mais a paisagem, andando no meio da estrada, curtindo o verde mar ondulante de soja, que me lembraram as canas do Caminho do Sol e os trigais do Caminho de Santiago. Uma gostosa sensação de "pequinês" diante daquela imensidão que me encontrava.
Ainda era dia quando cheguei ao calçamento de pedra vermelha das ruas de São Nicolau. Cidade pequena e receptiva.
Após uma pequena atrapalhada para achar o Hotel, me estabeleci, tomei banho e fui ver as Ruínas mais livre de todas, está exposta em praça pública. Muito danificada na verdade. Seu destaque é o resto de ornamentado piso original.


Ruínas em praça pública - São Nicolau - RS

De Encarnación, no Paraguai até ali foram 291 km sem infra-estrutura de Caminho. A partir do dia seguinte eu estaria percorrendo uma trecho com estrutura peregrina, o Caminho das Missões, mais 170 km em três dias. Caminho que vai de São Nicolau até Santo Ângelo, passando por São Luiz Gonzaga e São Miguel das Missões.

Motivado, pois começaria o novo Caminho, desde o início, por terra. Afoito, esqueci de comprar algo para comer no trajeto.
Logo no início, pneu furado. Relutei, relutei, não teve jeito, tive que tirar toda a bagagem e arrumar o pneu na estrada, em meio ao mar de soja. Quando terminei, a fome estava gritando. Pedalei uns 11 km até encontrar a casa da Dona Irene, uma senhora muito simpática que junto com seu filho Rodrigo me atenderam super-bem, foi um oásis.
Enquanto almoçava, a chuva desabava lá fora. O tempo mudou muito.


Caminho Bonito, mas logo isso virou uma lama.


Por falar em chuva, antes de parar para comer, eu via as nuvens se desmanchando ao longe, em várias direções, ela até que demorou para chegar. Mas quando veio, casou-se com a poeira e deram a luz a uma filha porreta, a LAMA. Como tinha lama nesse percurso.

Lama.
Lama.
Muita lama. Lama pegajosa.

Eu andava dois metros e parava para tirar a lama do freio (v-break), do pneu, dos câmbios, da corrente. Era tanta lama que começou querer invadir meu ânimo e por pouco não entrou em minha Alma. Foram 4,5 km de lama em uma hora e meia de empurra, arrasta bike. Para ter uma idéia, caminhamos a passos normais 4 km por hora, eu de bike estava a 3 km/h. Terra Brasilis...

Estava receoso de chegar a São Luiz Gonzaga, pois desde a Argentina tinha notícias de epidemia de dengue por lá. Mas na hora (nove da noite) e no estado que cheguei à cidade, nem me lembrei do mosquito.

Cambaleando, empurrando a Bikona, me aproximei do Hotel Ipê e para minha surpresa:
- O Seu Cleber, o senhor fez boa viagem!? Nossa, você deve estar cansado. Vamos entra.
Eles já me esperavam e o atendimento que a Lemara e o Adelar prestaram a mim foi revigorante. Para completar, tomei um banho demorado. O caldo vermelho de lama não parava de cair do corpo.
Fui jantar no Malaguetta e me dei ao luxo de pedir um Salmão Grelhado com molho cremoso. Excelente e com preço justo!
No outro dia, pedalei até um posto de combustível na saída da cidade. Lavei a bike, tirei a lamaceira que tinha, lubrifiquei e decidi não ir por terra hoje. Voltei para a BR. Agora a BR-285.


O resultado do dia anterior, antes de lavá-la no Posto.

A paisagem quase monótona. Subidas e descidas constantes, mas com determinação, foco, chegaria à meta do dia. O acostamento dessa BR era bom, porém nas subidas longas ele desaparecia e ficava perigoso, o jeito era subir rápido. É bom ter um incentivo desses para subir, RSS... Incentivo de carretas a mais de 100 km/h passando a um metro e meio de mim.


Maluco de BR

Pedalei por 40 km e cheguei à entrada de São Miguel das Missões. Teria mais 16 km de estrada vicinal, mas em minha cabeça, eu achava que já tinha chegado e comecei a vacilar, pedalando rápido na descida, no meio da estrada.
Não era minha hora.
O motorista do caminhão foi muito ligeiro, não buzinou, apenas desviou. Se buzinasse, provavelmente eu assustaria e poderia cair na frente dele. “Sorte” que não haviam carros vindo na outra mão. Dessa vez foi por pouco. Depois de ver o caminhão passando todo torto parei no acostamento pasmado. Reorganizando meus pensamentos enquanto não parava de tremer.

Cheguei em São Miguel, fui até a Pousada das Missões. Que pousada. Tudo muito limpo, organizado e bonito. O quarto que fiquei era coletivo, como nos albergues do Caminho de Santiago, mas eu estava sozinho nele.
O Bistrô Tembiu (da Pousada) é excelente e barato. Comi uma Paella de frango e uma Polar de garrafa por R$ 19. Um detalhe curioso são as lembranças turísticas que um dos donos da pousada deixa exposto. São tantos lugares...
Em São Miguel tem um espetáculo de Som e Luz, que há mais de trinta anos é apresentado diariamente nas Ruínas. Fui até lá para conferir. Tendo em vista o pioneirismo do show, valeu a pena. Há uma arquibancada onde ficamos sentados vendo e ouvindo as luzes e sons que brilhavam e ecoavam no Patrimônio Mundial da Humanidade.
Voltando a falar da Pousada, fui tomar um “Senhor café da manhã”, o melhor de toda viagem. Conversando com um casal, elogiei a Pousada e disse que tinha o Padrão das outros Hostels que havia pousado em Portugal. Nesse momento um senhor, que também estava no café, entrou na conversa. Disse que já tinha visitado os Hostels de Lisboa também quando fez o Caminho de Santiago, era um peregrino. Aliás, era o dono da pousada, o donos dos souvenires do Bistrô. Seu Carlos fez sua dissertação de mestrado sobre o Caminho das Missões. O papo foi muito interessante. Só terminou quando tiramos fotos na porta de entrada, pouco antes de eu partir para o último dia de Caminho das Missões. Via asfalto, claro.

Estava uma garoa fina, sai assim mesmo, dei uma outra passada nas Ruínas mais bem conservadas de todas as Missões. Vi duas índias, mãe e filhinha. Conversei com um grupo de jovens gaúchos, que faziam um mochilão pelo Estado e fui pedalar os 16 km até a BR.


Ruínas de São Miguel das Missões - Patrimônio Mundial da Humanidade no Brasil - Unesco

Nesse trecho, foi interessante que um ciclista local, me passou e deu uma risadinha. A pesar de estar com uns vinte e sete quilos de bagagem, eu precisava de um motivo para acelerar o pedal. Decidi buscá-lo. Não durou duas subidas, antes de eu passá-lo ele forçava desesperadamente seu pedal. Olhava para trás, me via chegando, chegando, chegando. Depois, sumindo, sumindo, sumindo à frente dele. Foi legal ter uma “competiçãozinha” para aquecer.
Assim que cheguei na BR, parei no posto de combustíveis e almocei. O trecho de BR era parecido com o dia anterior. Os acostamentos de BR´s tem suas peculiaridades, nesse trecho, observava as pequenas flores que nascem ao longo do caminho. Há uma variedade muito grande.
Cortei caminho, passando por dentro de Entreijuis e finalmente vi um Belo monumento à entrada de Santo Ângelo, uma Pirâmide por completar Perfeitamente ornamentada. Pedi ajuda a um providencial transeunte e tirei a foto de chegada à cidade.


Entrada Sul de Santo Ângelo - RS

Na cidade, me “perdi” e acabei encontrando o Banco que buscava e depois fui recebido pelo Cláudio, à frente da Catedral Angelopolitana.
A estrutura e a gentileza dos organizadores do Caminho das Missões foi formidável. Obrigado: Cláudio, Romaldo e Estelamaris. Muito obrigado, um dia voltarei para fazê-lo a pé!
Fui jantar na Pizzaria Água na Boca, além de ótimas pizzas e cerveja gelada, têm uma decoração com riquezas locais, com relíquias e arte que a Leila me permitiu ver de perto.

Fim de role. No total foram 480 km, num total de 8 dias de pedal + um dia de pedal em Assunción.
Bora pra casa. Mais quase 23 horas de ônibus e cheguei em Jundiaí. Eu pretendia ir de lá até em Casa pedalando, seriam “só” mais 25 km. Com apenas dois quilômetros o bagageiro dianteiro quebrou novamente.
Solução, chamei minha irmã: – Nega, vem me buscar. Logo ela apareceu com o carro e me resgatou.
Na subida de casa e encontrei os amigos Roger e Gerson, trocamos umas ligeiras palavras e...
Lar doce lar.

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