segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A melhor refeição Argentina - Conto

A respeito da Expedição Patagônia Norte não consegui escrevê-la como um relato detalhado, ainda estou digerindo a viagem. Porém, fiz um conto sobre um pouco das experiências dessa viagem.

A melhor refeição argentina – Conto – Cleber Sousa Teixeira - Outubro de 2014

– Moça, moça. Você não vai me contar histórias hoje?
– Já estou indo Seu Antenor – respondeu a jovem enfermeira.
– Adoro ouvi-las, me fazem viajar. Ao invés de dormir, desperto...
– Pronto, cá estou. Aqui a jarra e os copos. O tempo está muito seco e precisamos nos hidratar.
– Então levanta um pouco a cabeceira da cama, por favor.
– Assim, ou mais um pouco?
– Opa! Isso. Assim está bem.
– Onde paramos, deixa-me ver – folheando uma caderneta de capa há tempos puída. – Ah, sim, estamos na parte das viagens. Certa vez o viajante resolveu fazer uma travessia, se inspirara no navegador Amyr Klink e falou: “Para atravessar o Oceano ele fez um barco a remo simples e marinheiro; eu também farei uma travessia, só que por terra, cruzarei a América, do mesmo Atlântico ao Pacífico, só que de bicicleta.”.
– Nossa, um veículo tão frágil, uma bicicleta!
– Pois é, entre o desejo e a realização foram prazerosos oito anos. Com a ajuda de seu primo Tatu, aprendeu a pedalar uma mountain bike, primeiro em sua cidade, depois as vizinhas, seu Estado, o Estado vizinho; a evolução era gradual, cruzou países na Europa e na América, mas ele considerava isso apenas um preparo, pois nesses locais ele sempre contava com uma infra-estrutura turística com restaurantes e pousadas; na sua travessia continental não poderia contar com isso – ele se ajeitou como podia na cama, ela logo o ajudou. – O viajante tinha lá suas responsabilidades: dois filhos e uma carreira, a fonte financeira de seus desejos de viagens. Logo, pesquisava e planejava o quanto podia para não gastar muito e principalmente voltar vivo de suas andanças. Apesar de viajar só, ele sempre dizia que “apenas aparentava estar só, mas estava com Deus e as pessoas boas que encontrava no Caminho”. O projeto dessa travessia teve várias pegadas e os quatro meses anteriores a viagem foram de muita dedicação, que resultou em um guia personalizado resumido em setenta páginas, com mapas, escalas altimétricas, muitas atrações e riscos a correr. Ele buscou um trecho possível de percorrer em no máximo vinte dias de pedal, além de que também fosse o menos turístico possível, logo escolheu o Norte da Patagônia como destino.
– Ai, ai, ai. A Patagônia!
– Certa vez ouviu falar dos fortíssimos ventos patagônicos e teve a infeliz notícia de que pedalaria contra eles, abateu-se e arquivou o projeto por dois anos.
– Não me diga que ele desistiu?
– Calma, calma. Ele apenas estava cego e não via o óbvio. Numa noite, correndo em volta a um campo de futebol, ouvindo Ramones, Metalica, Guns e afins, a brisa leve no rosto e a frase I believe in miracles no fone de ouvido o iluminou. Mudaria tudo no projeto “se não posso contra o vento, vou a favor dele.”, pensou.
– Como assim?
– Ele inverteria a travessia, a “Expedição Patagônia Norte - do Pacífico ao Atlântico” tomaria seu rumo definitivo.
– E aí, conta logo, como foi a viagem?
– Então beba meio copo d'água. Vamos lá, eu lhe ajudo, também vou tomar. Isso Seu Antenor, muito bem!
– Agora conta – cobrou-a tendo os lábios ainda molhados.
– Está bem. O mês escolhido foi fevereiro. Equipamentos em ordem, passagens compradas, férias acordada, pronto, num sábado ao entardecer ele via magicamente a então rosada Cordilheira dos Andes, era sua primeira vez, estava emocionado embaçando a janela do avião. Dormiu no chão do aeroporto. No outro dia, uma rápida conexão à Puerto Montt, cidade de colonização alemã com uma mescla de charme e perigo portuário. De lá, embarcou em um ferry boat noturno à Chaitén – o rosto ansioso do ancião proclamava pela continuidade, ela atenta, embalou na narrativa já decorada. – Chuva fria, montanhas geladas, pedras e asfalto escorregadios. Saiu da barca empurrando a carregadíssima bicicleta, quarenta quilos de bagagem, mais dez litros de água, fora os quinze quilos que o viajante levava de lastro “gordural”, ele era vidrado numa cervejinha. Com dificuldades, encostou seu pesado camelinho no barranco. Pegou um pequeno frasco plástico, aqueles de guardar remédios líquidos, desceu para a primeira coleta: um tantinho de águas do Pacífico. O vento inclemente quase fez de pipa mandada sua capa de chuva. Despediu-se do vilarejo e daquele Oceano rumo ao pé dos Andes. A estrada lisinha, as gotas que lhe cortavam o rosto, caminhonetes, muitas delas a mais de cem por hora. Mesmo com um dia ruim, fez-se um belo dia feio. Um pouco antes da primeira cidadela do caminho, olhou à direita e assustou-se com um avião caído no meio do mato e com mato no meio. Achou que apenas passaria por essa cidade, mas a bicicleta quebrou o eixo e lhe faltou uma chave dezessete, precisaria de duas. Problema, que nada, um casal dono do parque privado apareceu, logo seus funcionários o ajudaram, dois chilenos e uma alemã que viajava de moto desde o Peru e ali parou para trabalhar. Seguiu viagem pela Carretera Austral, agora sem asfalto, sofreu, mas sofreu muito. A chuva criou muitos olhos na estrada de rípio, mas viu vulcões, lagos, glaciares e picos nevados. As subidas eram intermináveis e a parte chilena da expedição durou o dobro do previsto, quatro dias, “...tudo bem, a paisagem compensava.”, ele escrevera em seu diário. A parada mais importante da etapa argentina foi Esquel, cidadezinha toda quadriculada, tendo ao fundo montanhas que no inverno serviam de pista de esqui. O albergue internacional era ótimo, mas duvidavam que ele fosse capaz de fazer noventa e cinco quilômetros até Gualjaina. Logo de manhã, saiu da cidade e lamentou não ter visto de perto a maria-fumaça, que fora parte do antigo Expresso Patagônico e apitava nos trilhos à beira da estrada. Fez um pequeno trecho da mítica Ruta 40 e mesmo se perdendo um pouco, conseguiu chegar ao duvidado destino do dia, os trechos de asfalto definitivamente acabaram. Bem, mas antes, mais meio copo de água.
– Ah... mas acabei de beber.
– Não senhor. Já estou com a boca seca. Vamos. Eu lhe ajudo de novo – com manha ou sofreguidão, bebeu sem tirar os olhos dos olhos dela. – A próxima etapa foi dura, mas ele estava motivado, por sorte sua bicicleta só quebrou quando ele chegou a uma pousada de Piedra Parada, reduto de escaladores em rocha, lá há um cânion – seus olhinhos ávidos suplicavam por mais. – A roda dianteira partira ao meio, lá não haveria qualquer solução, o jeito seria voltar para Esquel. Como? Só de carona, o ônibus semanal partira naquela manhã. Relaxou, tomou uma Quilmes e montou acampamento. No outro dia, deixou parte da bagagem no local e foi hacer dedo na beira da estrada, o primeiro carro que passou, parou e o salvou; o levou até a cidade, lá resolveu tudo e voltou a dormir naquele albergue, onde comprovou que havia chegado ao destino, ainda assim, fora duvidado. Muito bem, parecia tudo resolvido, mas e agora como voltar? – os olhos de Seu Antenor pareciam que iram saltar, já sua boca diminuíra à metade. – Deu um pulinho para conferir de perto a relíquia ferroviária. Pegou um ônibus até Gualjaina, com três caronas e um par de horas de esperas finalmente voltou onde tinha parado a pedalada. Em Paso el Sapo, cruzou o rio Chubut, na exata metade do caminho, desse rio, coletou mais um frasco d´água. Gastre lhe fora muito hospitaleira, sentiria falta disso, pois a Ruta Provincial 4 seria duríssima. As pedras soltas do rípio eram asfalto perto das areias finas do deserto. A bicicleta deitava na estrada e ele quase sempre caía e se ralava. Um dia antes chegou a delirar com um refrigerante gelado em meio ao deserto, e não é que o Universo o atendeu, não só com o “refri”, mas também com um prato de macarrão em pleno deserto. A melhor refeição argentina! Tirando um dia que cantou “Maluco Beleza” do Raulzito e bebeu água de maneira que lhe escorria pela barba e pescoço, o deserto fora muito cruel com seu psicológico, sofrera muito com a dureza do caminho e a solidão. Sentiu falta de dividir tudo o que vivia com os seus. Ao todo, pedalou 1.015 quilômetros, alcançou seu objetivo e colheu a água do Atlântico também. Nessa viagem aprendeu coisas que demorou anos para entender.
– Cante um trecho dessa música. Posso beber água igual a ele?
– Claro. “... por esse caminho que eu mesmo escolhi...”
– “... é tão fácil seguir, por não ter aonde ir...” – com a água molhando sua camisa. – Agora me lembro, nunca havia me sentido tão livre quanto aquele dia.
– Eu sei vovô! Eu sei! Amanhã lhe falarei do Aconcágua.

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